12ª Edição: No Labirinto do Ditador
1962: Os Vários Salazares de Fernand Pessoa e a Era Pós-Pessoa
Prefere ler esta publicação bilíngue em INGLÊS? Clique no link 12th Edition.
1962: Um ano decisivo em que importantes transições moldaram destinos – das colónias africanas ao labirinto salazarista, uma geração em busca de liberdade desafiou a opressão com novas armas de pensamento e resistência.
Bem-Vindo(a) à 12ª Edição de Tenho Uma Coisa Para Te Contar, na série quinzenal da publicação dedicada ao 80º aniversário do nascimento de Evo Fernandes. Esta edição destaca o ano de 1962 como um marco crítico na formação pessoal e intelectual de Evo Fernandes, ao transitar do ensino secundário para o ensino universitário.
1962: Ano de Inflexão no Labirinto do Ditador
O ano de 1962 representou um ponto crítico no labirinto político do império colonial português, reflectindo mudanças profundas nas décadas seguintes.
Fernando Pessoa, que nos deixou em 1935, nunca conheceu pessoalmente António de Oliveira Salazar; mas ao que parece, enxergava a sua ‘alma política’ à distância. Pessoa via Salazar como um líder multifacetado — da Ditadura Militar à criação do Estado Novo.
Inspirando-nos na obra de Manuel S. Fonseca de 2021, Que Salazar Era o Salazar de Pessoa?, podemos indagar: ‘Que Salazar era o Salazar de 1962?’.
Que Salazar Era o de 1962?
Manuel Fonseca tem razão ao escrever no prefácio do seu livro, que Fernando Pessoa não podia adivinhar os Salazares posteriores à sua morte, como por exemplo, o da declaração de Abril de 1961, ’rapidamente e em força para Angola’ (Pinto, 2007: 11)’.
A história mostra que os Salazares que Pessoa identificou, não abrangeram plenamente o ditador ao longo de 36 anos cujo nome ‘Salazar’ é embalagem quando hoje, ‘nostálgicos o invocam, ou reprobatórios o execram’ (Fonseca, 2021: 11).
Os Três Salazares de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa testemunhou os primeiros anos de ascensão de Salazar, entre o final dos anos 1920 e o início dos 1930. Através de seus escritos é possível identificar três fases distintas de Salazar, cada qual reflectindo a sua crescente consolidação do poder.
No entanto, antes de abordar essas fases, é útil destacar que Pessoa não era um apologista do salazarismo; ele rejeitava as ideologias totalitárias do Século XX – tanto o fascismo como o comunismo -, pois as via como ameaças à liberdade individual, suprimindo a autonomia a favor do Estado.
Para Pessoa, Salazar representava um perigo: a possibilidade do domínio do pensamento monolítico e o risco do colectivismo, que ameaçavam as liberdades de expressão e criação. Considerava o comunismo como ‘um dogmatismo sem sistema’, inimigo da liberdade e da humanidade. Para Pessoa, Salazar era um ditador em mutação constante - algo entre o fascínio e o perigo. Afinal, quantas ‘caras’ poderia ter um líder?
Até à sua morte, Pessoa observou como Salazar assumiu diferentes papéis no cenário político português, evoluindo de um tecnocrata eficaz a um ditador pleno. Três facetas distintas de Salazar podem ser identificadas nos textos de Pessoa: o 'Ditador das Finanças', o 'Construtor do Estado' e o 'Ditador da Cultura'.
Salazar, o ‘Ditador das Finanças’ (1928-1932)
Pessoa começou por ver o jovem e circunspecto Salazar como um tecnocrata competente e rigoroso, um gestor frio e calculista que ao assumir o Ministério das Finanças, trouxe estabilidade à economia portuguesa, resgatando o país da desordem da Primeira República.
Pessoa admirava a sua clareza de raciocínio e firmeza de vontade, especialmente na tarefa de equilibrar as finanças de Portugal após o caos da Primeira República. Para ele, Salazar era um ‘economista de ferro’, que controlava as finanças com a frieza de um contabilista e a precisão de um relojoeiro.
Uma figura que impunha ordem financeira sem paixão, mas com uma competência contabilística notável. Esse Salazar era o homem da austeridade, da racionalidade técnica que impunha controle e organização às finanças do Estado.
Salazar, o ‘Construtor do Estado’ (1932-1933)
Quando Salazar assumiu o controle total do governo em 1932, ele consolidou a sua visão para Portugal, moldando o Estado Novo como um regime centralizado e autoritário. Sob o seu comando, o país adoptou uma postura ultraconservadora, criando uma estrutura corporativista para reforçar valores católicos e nacionais.
O historiador e filósofo Mircea Eliade (1942) observa que Salazar aspirava a um 'Estado cristão e totalitário' fundamentado em valores espirituais e familiares para proteger Portugal de ideologias liberais estrangeiras.
Nos sete anos que se seguiram, Pessoa viu Salazar expandir a sua influência como uma hera, de ministro a chefe de governo e depois, à indiscutida primeira figura do Estado (Fonseca, 2021: 12).
Embora Pessoa ainda reconhecesse qualidades técnicas em Salazar, começou a desconfiar da falta de entusiasmo e imaginação no ditador, que gradualmente transformava o país num regime mais opressivo.
Diferentemente de líderes fascistas europeus, que cultivavam um carisma público e teatral, Salazar mantinha uma postura discreta e reservada, evitando o 'cesarismo pagão' de Mussolini e preferindo um regime com 'carga moral' própria, onde o Estado protegia valores cristãos e familiares, preservando Portugal de influências externas (Eliade, 1942).
Curiosamente, essa eficiência financeira acabou revelando-se tanto uma força como uma fraqueza. Teria Salazar previsto que o seu controle sobre as finanças seria também o alicerce de um regime rígido e resistente a mudanças?
Salazar, o ‘Ditador da Cultura’ (1934-1935)
A partir de 1934, a relação de Pessoa com Salazar deteriorou-se significativamente. O poeta passou a criticar ferozmente o regime, especialmente a ideia de que as artes e a cultura deveriam servir o Estado.
Este Salazar, o último que Pessoa conheceu antes da sua morte, é retratado com crueldade e sarcasmo, simbolizando o líder autoritário e tirânico que tentou impor uma uniformidade cultural e política ao país, extremamente nefasta para a liberdade criativa e intelectual.
Esses ‘três Salazares’ reflectem a evolução da atitude de Fernando Pessoa em relação ao ditador, variando da admiração inicial à crítica mordaz no final. Para Pessoa, a pluralidade de Salazar revelava um dilema inquietante: seria possível um líder tão pragmático preservar a alma de um país tão diverso?
Depois de Pessoa: o Ditador em Transformação
Após a morte de Pessoa em 1935, o ditador que ele conheceu continuou a consolidar a sua figura central no cenário político português. Todavia, os desafios que Salazar enfrentou nas décadas seguintes, especialmente com a Segunda Guerra Mundial e as pressões para a descolonização, geraram novas etapas e desafios no regime salazarista.
Esses novos desafios resultariam em diferentes 'Salazares' que Pessoa, se estivesse vivo, certamente identificaria — figuras que embora mantenham a rigidez autoritária, derivaram de um mundo em rápida transformação.
Atrevemo-nos a adicionar alguns outros Salazares evidenciados nos 35 anos posteriores à morte de Pessoa, tomando para tal diferentes fontes, nomeadamente: Salazar e a Revolução em Portugal (1942) de Mircea Eliade; História de Moçambique (1997) de Malyn Newitt; António de Oliveira Salazar: O Outro Retrato(2007) de Jaime Nogueira Pinto; Salazar. Biografia Definitiva (2011) de Filipe Ribeiro de Meneses; e O Ditador que se Recusa a Morrer (2021) de Tom Gallagher.
Salazar, o ‘Ditador da Guerra’ (1939-1945)
Salazar pressionado por todos os lados durante a Segunda Guerra Mundial, manteve Portugal ‘neutro’ – no que ele chamava de ‘posição de equilíbrio estratégico’. É difícil saber se alguém comprou essa ideia, mas ele permaneceu firme, reforçando uma imagem de estadista pragmático e calculista.
Ao mesmo tempo consolidou internamente o regime, reforçando a censura e a repressão para garantir que o Estado Novo sobrevivesse à guerra. Que impacto esperava Salazar da sua ‘neutralidade’ para com o futuro de Portugal, quando os outros países buscavam caminhos de renovação?
Salazar, o ‘Guardião do Império’ (1946-1959)
Após a Segunda Guerra Mundial, Salazar manteve-se repressivo e intransigente nas colónias, especialmente em Moçambique, onde o regime restringia a cidadania e dependia do trabalho forçado para sustentar a economia colonial, o que fomentava o descontentamento e apoio à resistência popular.
Para reforçar o seu domínio, Salazar aliou-se aos governos de minoria branca na Rodésia e África do Sul, formando uma frente regional contra a descolonização. Gallagher (2021) e Pinto (2007) sublinham a tenacidade de Salazar, que não via alternativas à manutenção do império, consolidando o isolamento internacional em nome de uma ‘missão civilizadora’.
Rejeitava modelos liberais, alegando a autonomia cultural portuguesa e defendendo uma ‘reintegração na tradição racional’ enraizada em valores espirituais (Eliade, 1942). Em Moçambique, o 'Estatuto do Indigenato' criava uma cidadania de ‘segunda categoria’. Talvez para Salazar, isso fosse ordem; para os moçambicanos era pura opressão, reforçada pela criação dos 'aldeamentos' sob controle militar, os quais alienavam mais a população e fortaleciam a influência da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) (Newitt, 1997).
Fundada em 1962, muito cedo a FRELIMO tornou Moçambique um campo de batalha ideológico. Sob a crescente pressão da ONU (Organização das Nações Unidas) e dos Estados Unidos da América para abandonar o colonialismo, Salazar resistia, justificando a repressão como uma ‘missão civilizadora’ que isolava o regime internacionalmente, mas alimentava o movimento independentista, apoiado pela União Soviética e China.
Salazar, o ‘Ditador Estagnado’ (1960-1968)
Os anos de guerra e pós-guerra trouxeram mudanças significativas, culminando na década de 1960, período em que o regime salazarista passou a enfrentar ameaças directas, tanto no plano internacional como nas colónias.
A criação da FRELIMO em 1962 foi um ponto decisivo para Moçambique, com o movimento recebendo apoio de países socialistas como a União Soviética e a China. Essa aliança com o bloco comunista permitiu que em dois anos apenas, a FRELIMO se preparasse para desencadear as suas operações armadas a partir de Setembro de 1964.
Salazar, preso ao mito de um império português eterno, respondeu com mais repressão, intensificando a presença militar e endurecendo as leis, sem perceber ou não se importando que o regime estava crescentemente encurralado por pressões internacionais.
Apesar disso, Salazar manteve-se inflexível, recusando qualquer concessão à auto-determinação das colónias e reforçando uma postura repressiva, tanto na metrópole como nos territórios ultramarinos sob a sua administração.
Este Salazar, já envelhecido e preso às suas convicções rígidas, mostrou-se incapaz de lidar com a inviabilidade da descolonização, tornando-se uma figura estática e impotente face ao progresso e às mudanças globais.
Como destaca Gallagher, Salazar parecia ‘recusar-se a morrer’ politicamente, mantendo-se rígido em suas convicções e sem reconhecer a impossibilidade de sustentar um império colonial eterno.
1962: O Legado Duradouro de um Ano Decisivo
Em 1962, o mundo encontrava-se no auge da Guerra Fria, com destaque para a crise dos mísseis em Cuba, no último trimestre, evidenciando a ameaça nuclear e a tensão extrema entre os blocos.
A criação da FRELIMO e a luta armada pela independência, com o apoio do bloco socialista, também contaram com o apoio de populações afectadas pelas difíceis condições geográficas e climáticas, incluindo secas e fomes recorrentes, que tornavam a subsistência cada vez mais desafiadora. Essa realidade reforçava o descontentamento e impulsionava a mobilização pela independência, cujas consequências de longo prazo persistem até aos dias de hoje.
O ano de 1962 representa um ponto de inflexão no regime salazarista, com acontecimentos de impacto duradouras. Internamente, as manifestações estudantis em Lisboa e Coimbra, no primeiro trimestre, questionavam a repressão e a censura. Moçambique acompanhou esse confronto, com estudantes como Evo Fernandes observando in loco as restrições do regime e o despertar de consciência para as aspirações independentistas (9ª Edição: Cruzando Labirintos).
Batalha pela África do Guardião do Império
No contexto da Guerra Fria, as tensões nas colónias aumentaram e alguns governantes do regime procuraram prevenir o pior com reformas legislativas na economia e no trabalho. Entre elas, as reformas de Adriano Moreira, Ministro do Ultramar (1961-1962), que visaram suavizar o integracionismo e ampliar a cidadania portuguesa.
Em 1962, Moreia também anunciou a criação dos Estudos Gerais Universitários de Moçambique (EGUM) e de Angola, pelo Decreto-Lei nº 44.530, de 21 de Agosto. Esta medida gerou debates sobre a autonomia dos EGUM em relação às universidades portuguesas.
Veiga Simão, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, foi nomeado Reitor dos EGUM, assumindo em 31 de Dezembro de 1962. Os cursos com apoio do Instituto Superior Técnico de Lisboa e da Universidade de Coimbra, visavam garantir ‘dignidade total’ ao ensino ultramarino. Simão aspirava a uma universidade moderna e autónoma, apesar do seu vínculo com o regime colonial.
Este período representou o auge do labirinto criado por Salazar, um sistema onde a lei, em vez de promover a justiça e liberdade, foi moldada para sustentar a tutela e repressão do regime. O ‘Ditador da Cultura’, criticado por Pessoa, transformou-se no ‘Ditador Estagnado’, relutante em adaptar-se ao progresso.
Novos Caminhos em Perspectiva
O ano de 1962 foi um ponto de inflexão para o regime de Salazar e para geração de jovens como Evo Fernandes, que se preparava para um futuro incerto decorrente de transformações globais e coloniais.
Evo concluiu o ensino secundário no Colégio São João de Brito, em Lisboa, destacando-se em disciplinas humanísticas, embora com desafios nas ciências exactas.
O seu desempenho escolar reflectia uma educação rigorosa mas aberta à criatividade, preparando-o para novos desafios intelectuais no ensino universitário, num contexto onde o conhecimento jurídico parecia indispensável para oferecer uma alternativa essencial a uma transformação construtiva e pacífica, em vez de destrutiva e violenta.
Em Outubro de 1962, ao iniciar os estudos em Direito, Evo Fernandes provavelmente só pensava em livros e aulas, bem como nas suas reflexões poéticas introspectivas e reservadas (11ª Edição: Ecos de Identidade e Liberdade), restando-lhe pouco tempo para as complexas batalhas políticas que logo o cercariam.
A criação da FRELIMO e a resistência nacionalista moldaram as suas escolhas e as de outros moçambicanos. Para Evo e a sua geração, 1962 foi o início de uma busca por liberdade e justiça num ambiente que Salazar via como incapaz de autogovernar-se, sustentando a sua rejeição de reformas políticas.
Assim, a escolha de Evo pelo Direito representava não só uma busca por conhecimento, mas uma resposta aos desafios de seu tempo, sem prever as vicissitudes que encontraria. Gallagher (2021) capta essa perpetuação de Salazar, argumentando que o ditador ‘se recusa a morrer’, simbolizando a resistência do regime em evoluir e alimentando o crescente descontentamento e a luta por mudança.
Ao escolher o Direito, se Evo vislumbrava o papel das leis na transformação da sociedade, mais adiante, nesta publicação, veremos como a realidade o surpreendeu de forma paradoxal ou até mesmo cruel.
Num ambiente cada vez mais polarizado entre a captura do sistema jurídico para a opressão dogmática colonial e a emergência de alternativas anti-doutrina ou contra-doutrina - o ‘dogmatismo sem sistema’ de que alertava Pessoa -, até que ponto o Direito poderia se converter numa ferramenta real de libertação para os moçambicanos?