29ª Edição. O Poder dos Beócios: Como a Irracionalidade Derrotou os Visionários
Beira, 1974 — Uma história de exclusão, oportunismo e silêncio sob as leis de Cipolla
Bem-Vindo(a) à 29ª Edição de Tenho Uma Coisa Para Te Contar, por ocasião do 80º aniversário de Evo João Camões Fernandes. Prefere ler esta publicação bilíngue em INGLÊS? Clique no link – 29th Edition. The Power of the Beotians: How Irrationality Defeated the Visionaries.

1974: A Anatomia de um Delírio em Construção
Em Maio de 1974, no rescaldo do 25 de Abril e da implosão do regime de Caetano, abriu‑se em Moçambique uma janela de autodeterminação. Mas que tipo de independência se desenhava - pluralista ou monolítica?
A 27ª Edição: Maio de 1974 - Quando a Liberdade Chegou... E Calou a Diferença revisitou a breve e turbulenta passagem de Evo Fernandespelo Notícias da Beira, onde assumiu a subdirecção a 1 de Maio, que durou um mês.
Esta integração surgiu na sequência da sua desmobilização da tropa em Março. Evo aceitou o convite de Jorge Jardim, figura central nos esforços para uma solução negociada para a guerra colonial.
Jardim, articulado com os presidentes do Malawi e da Zâmbia, concebera o “Programa de Lusaka”[1], bem antes do 25 de Abril. A queda do regime português, contudo, inverteu o curso dos acontecimentos.
Se até então Jardim era visto com desconfiança pelos conservadores militares, após a revolução passou a ser retratado pelos sectores revolucionários, como promotor de uma “solução rodesiana” — alegadamente racista e contrária ao espírito revolucionário preconizado para o tipo de independência ambicionada pelo movimento guerrilheiro, liderado por Samora Machel.
A simples ligação de Evo a Jardim bastou para que fosse recebido com hostilidade. A redacção do jornal, predominantemente masculina[2] e ideologicamente radicalizada, dispensou-lhe o mesmo desdém que vinha sendo reservado ao seu mentor, convertido num “alvo a abater”.[3]
Neste contexto envenenado, Evo foi empurrado para o labirinto da exclusão, um destino partilhado por outros que se recusaram a alinhar cegamente com a ortodoxia emergente.
É neste ponto que introduzimos o modelo de Carlo M. Cipolla, publicado no volume intitulado Allegro ma non troppo.[4] Com ironia e clareza, Cipolla propõe uma grelha analítica simples, baseada nas consequências dos actos: se geram ganho ou perda para si e para os outros.
O modelo distingue quatro categorias:
1. Inteligente (Visionários, Empreendedores) - criam valor para si e para a colectividade;
2. Ingénuo (Inexperientes, Idealistas Desarmados) - sacrificam-se tentando beneficiar os outros;
3. Predador (bandidos, oportunistas, revolucionários radicais) – lucram à custa do bem comum;
4. Beócio (Inconsequentes, Estúpidos, Idiotas úteis ) – prejudicam a todos, sem benefício para si.

Longe de ser apenas uma excentricidade académica, o modelo de Cipolla revela-se uma ferramenta quase cirúrgica para dissecar o teatro trágico-cómico da Beira em 1974 — um elenco variado de visionários, predadores, oportunistas e idiotas úteis.
Nos blocos seguintes, aplicaremos esse modelo aos protagonistas do período, distinguindo aqueles que como Evo, procuraram construir um espaço de liberdade e responsabilidade democrática, dos que preferiram a usurpação, o zelo cego ou a ruína sem ganho.
Mapas da Irracionalidade: Tipos Humanos em Conflito

1. Inteligente: visionários, empreendedores
Na tipologia de Carlo M. Cipolla, os inteligentes são aqueles cujas acções geram valor para si e para a sociedade. Em 1974, em Moçambique, esses eram raros – mas notáveis.
No campo económico, António Champalimaud[5] é exemplo paradigmático – “sem dúvida o maior empresário industrial português que se estabeleceu com uma larga visão de desenvolvimento, atrofiado pelo sistema político, sobretudo no tempo do marcelismo”.[6]
Sem filiação ideológica explícita, investiu com racionalidade em sectores estruturantes — cimento, siderurgia, banca e agro-indústria. Estabeleceu fábricas em Lourenço Marques (1944) e na Beira (1951), criou empregos, crédito e infraestrutura energética, operando 45 agências bancárias no país. Embora alheio ao jornalismo, compreendia o seu valor estratégico e confiava essa missão a Jorge Jardim — operador político-económico e mestre da diplomacia paralela.[7]
No plano institucional, Evo Fernandes despertou como visionário. Após a desmobilização militar, iniciou carreira jurídica com William Pot e aceitou o convite de Jardim para assumir a subdirecção do Notícias da Beira.
Defendia um jornalismo plural e independente, alinhado à construção de um Estado de direito. No entanto, foi rapidamente afastado, parafraseando Fernando Couto, pelos “intelectuais pacíficos de esquerda” convertidos, “a toque de varinha mágica”, em militantes mais radicais que a própria FRELIMO.[8]
No fim de Maio de 1974, a direcção do jornal foi saneada e entregue a uma comissão de trabalhadores. Henrique Coimbra assumiu interinamente até Dezembro, quando Afonso dos Santos e José Quatorze, alinhados ao novo poder, tomaram posse.
Não tardou que a “liberdade” recém-descoberta se expressasse em pichações e slogans radicais, numa euforia que logo esbarrou na escassez de tinta, papel — e rumo.[9]

Visionários como Evo não tinham lugar nesse novo ambiente. A independência estava sendo rapidamente capturada por uma elite revolucionária autoritária, onde crítica era conspiração e pluralismo, traição. Por isso, merecem menção nacionalistas como Domingos Arouca e Joana Simeão, bem como Jorge Jardim, todos com projectos alternativos de transição democrática pacífica.
Miguel Murupa é outro caso de inteligência excluída. Próximo de Mondlane e Simango, opôs-se ao radicalismo da FRELIMO. Expulso da Voz Africana, desconfiou das garantias de segurança do General Costa Gomes e exilou-se em Setembro de 1974, evitando o destino trágico de Uria Simango.
Anos depois, recusou um convite de Evo para aderir à RENAMO, fiel à sua visão integradora, cristã e legalista.[10] Como Evo, Murupa representa o drama dos visionários vencidos pela cegueira colectiva do seu tempo – figuras que como descreve Cipolla, procuraram fazer o bem para todos e acabaram derrotados pela irracionalidade beócia dominante.
2. Predadores: bandidos, vigaristas, revolucionários radicais
NA tipologia de Cipolla, os Predadores são agentes que prosperam à custa dos outros, sacrificando liberdade, pluralismo e o bem comum.
Na Beira de 74, Castro Lobo, Mário Ferro, José Quatorze e Afonso dos Santos exemplificam essa categoria. Alinhados rapidamente à FRELIMO, transformaram o Notícias da Beira num veículo de propaganda revolucionária – dos Pravdas do Moçambique independente.[11]
Castro Lobo, comunista militante, assumiu depois a direcção da Polícia de Investigação Criminal (PIC) em Quelimane, onde segundo Inácio de Passos, liderou perseguições e assassinatos de cidadãos portugueses.
Mário Ferro, repórter militante, usou a cobertura jornalística para legitimar prisões e extorquir comerciantes e agricultores. Os seus artigos contribuíram para a deportação de civis para campos de reeducação, onde ocorreram mortes documentadas. Movido por zelo ideológico e ambição pessoal, causou danos massivos à sociedade — uma manifestação brutal do predador político cipolliano.[12]
José Quatorze, então jornalista da Tempo, forjou protagonismo ao reivindicar o primeiro contacto com guerrilheiros da FRELIMO, apagando contribuições anteriores. Num salto triplo sem ética, transformou o jornalismo em trampolim pessoal — com medalha simbólica em “saneamento com estilo”.[13]
Afonso dos Santos, advogado, foi nomeado director do jornal após liderar sob a bandeira dos “Democratas de Moçambique”, uma campanha contra Jorge Jardim. O seu “empenhamento [...] um tanto ingénuo”,[14] rendeu-lhe promoção, não por mérito editorial, mas por alinhamento partidário — um caso típico de capitalização ideológica para ganho pessoal.
Alguns operários das oficinas, ao assumirem a gestão do jornal e imprimirem panfletos anónimos, também actuaram como predadores acidentais: colheram ganhos imediatos, enquanto corroíam a credibilidade da redacção.
Como admite o próprio Couto, o Notícias da Beira foi “tomado de assalto por revolucionários de última hora, movidos pelo ensejo de subirem rapidamente na vida. Com a mesma velocidade que entraram, assim saíram rapidamente do país”.[15]
Em todos os casos, a busca de proveito pessoal agravou a degradação institucional e o colapso da ética jornalística imparcial — sinais nítidos da acção predadora descrita por Cipolla.

3. Ingénuos: Idealistas Desarmados, Inexperientes, Candidamente esperançosos
No modelo de Cipolla, os ingénuos são movidos por ideais desarmados ou emoções momentâneas, mas subestimam riscos e saem prejudicados, sem benefício próprio ou do colectivo.
Joana Simeão, embora fora do jornalismo, é exemplo paradigmático: em 2 de Maio de 74, defendeu na RTP uma transição pluralista, reconhecendo a FRELIMO. Foi logo rotulada de “ambígua” e isolada — num ambiente que já não tolerava nuances.
No Notícias da Beira, Odete Carreio manteve uma linha equilibrada, tentando incluir diferentes vozes, mas teve os seus textos censurados e foi afastada. Acreditava que o espírito do 25 de Abril garantiria o pluralismo.
O mesmo se aplica a operários gráficos e jornalistas, que ao imprimir panfletos em defesa da liberdade, acabaram agravando a desagregação institucional. Agiram com sentido de justiça, mas sem cálculo estratégico, contribuindo involuntariamente para o colapso interno de uma redacção de pensamento livre.
Fernando Veloso, fotógrafo com reportagens visuais marcantes, pode ter contribuído também para o cerco a Evo Fernandes — não por malícia, mas por omissão ingénua. Se assim foi, terá actuado sem benefício próprio, o que o aproxima desta categoria, embora com traços de transição para a inconsistência política, dependendo da consciência e intencionalidade.
O livro de Inácio de Passos descreve jovens jornalistas fascinados pelo discurso revolucionário, que aderiram à FRELIMO com entusiasmo, mas sem maturidade política. Muitos afastaram-se desiludidos. Foram vítimas do seu próprio deslumbramento — ingénuos sinceros num tempo que não perdoava hesitações.
4. Beócios: Imprudentes, Inconsequentes, Desestabilizadores, idiotas úteis
Na tipologia de Cipolla, os beócios prejudicam a todos — inclusive a si mesmos – com zelo quase heroico, como tochas acesas num paiol. As suas acções são marcadas por irracionalidade autodestrutiva, com impacto social negativo.
Para respeitar a sensibilidade cultural, o termo “estúpido”, utilizado por Cipolla, foi substituído por expressões como “beócio”, “irracional” ou “inconsequente”, sempre com foco no padrão de acção e não em ofensas pessoais.
Inácio de Passos, num momento desastroso, publicou uma carta explosiva, num contexto político já em ebulição. No seu livro confessa:
“Servi o inimigo e lamento. Foi uma precipitação. Não era minha intenção prejudicar Moçambique. Estou muito arrependido da minha atitude.”[16]
Jorge Figueiredo Jorge, guiado por fervor maoista, atacava ferozmente a cultura portuguesa, estilo que Samora Machel mais tarde replicaria exaustivamente.
Heliodoro Baptista , acreditou que slogans bastariam para garantir relevância no jogo de poder. Mais agitador do que estratega, sem vocação para singrar na vida como usurpador de poder, tornou-se irrelevante. Agiu como um corvo em festival de pombos — deslocado, barulhento, ineficaz.
Fernando Amado Couto e seu pai escamotearam sistematicamente a repressão pós-independência, comprometendo a credibilidade do jornalismo investigativo. Apesar disso, o livro que produziu, embora sem autocrítica, apresenta dados valiosos e ajuda a reconstituir o complexo mosaico de 1974.
O Discurso de ódio difundido em canções revolucionárias, ensinadas às crianças nas escolas - “Joana é reaccionária... Simango é reaccionário, Murupa é reaccionário…”, gerou traumas geracionais, sem qualquer benefício político concreto, como recorda Adelino Timóteo.[17]
Foi expressão de uma cegueira colectiva que perpectuou o dano por décadas, ao serviço de demagogia e populismo:
“Porque nada diz liberdade ou unidade nacional com ensinar o adiar o vizinho”.

António de Almeida Santos, ao propor a “desdramatização” de abusos coloniais e revolucionários, corroeu pontes e legitimidade histórica, sem ganhos tangíveis.
Guilherme da Silva Pereira, ao encenar uma agressão e ter um poema promovido em cartazes da FRELIMO, comprometeu-se em troca de notoriedade efémera, arruinando a sua imagem. Um caso claro de acção autodestrutiva com efeitos colaterais sociais.
Santos Martins, ex-delator e depois militante da FRELIMO, navegou entre oportunismos e desorientação, sendo um caso-limite entre beócio e predador.
Fernando Veloso, se de facto teve participação na prisão de Evo Fernandes sem intenção ou benefício, pode ter agido por omissão — um caso de fronteira entre ingenuidade e conivência beócia.

Da Esperança ao Silêncio: Legados e Lições de um Erro Repetido
Consequências e Lições
A aplicação do modelo de Cipolla aos acontecimentos entre Maio e Novembro de 1974 revela três consequências estruturais:
1. Erosão da confiança social
A sucessão de actos predatórios e beócios — da manipulação editorial à negação da repressão — corroeu a credibilidade do jornalismo e destruiu as bases de confiança cívica no Estado.2. Marginalização dos moderados
Visionários e ingénuos como Evo Fernandes e Joana Simeão, foram silenciados. A sua fé na liberdade de expressão e no diálogo institucional — partilhada por figuras como Jorge Jardim — ilustra a primeira lei de Cipolla: subestimaram o número de beócios activos no sistema.3. Cicatrizes intergeracionais
O discurso de ódio precoce e o sectarismo doutrinário deixaram marcas profundas. Semearam desconfiança duradoura e bloquearam à partida, qualquer tentativa séria de reconciliação e unidade nacional efectiva.
Lições para transições políticas
Proteger os visionários, garantindo que não sejam engolidos pela irracionalidade dominante.
Contenção dos predadores, com regras claras e responsabilização efectiva.
Canalizar a energia dos ingénuos para contextos estruturados, protegendo-os da implosão e degenerescência institucional.
Neutralizar os beócios: Cipolla lembra-nos que os não-beócios tendem a subestimar o seu potencial destrutivo. A irracionalidade institucionalizada, sobretudo quando aliada ao poder dos predadores, é mais devastadora do que a malícia.
Este modelo oferece mais do que uma leitura retrospectiva: é um mapa para prevenir fracassos semelhantes noutras latitudes e futuros incertos.
📣 “A democracia não exige perfeição, mas exige coragem, integridade e inteligência. Quando deixamos que a conveniência substitua a verdade – ou que a resignação silenciosa proteja a ignorância - perdemos mais do que eleições. Perdemos a alma cívica e o fio da razão que sustenta a liberdade.”
Esta reflexão - inspirada em pensadores como Nelson Mandela,[18] Winston Churchill,[19] George Orwell[20] e Wole Soyinka[21] - poderia ter sido escrita para 1974 ou para 2025. Em contextos onde a verdade é manipulada para legitimar abusos, os beócios vencem. E todos perdemos.

[1] Jorge Jardim, Moçambique Terra Queimada, Editorial Intervenção (Lisboa, 1976).
[2] Algumas das excepções: D. Lídia, tradutora e chefe da secção de Estrangeiros e Odete Carreio, uma repórter.
[3] Jardim, Moçambique Terra Queimada, 190–93.
[4] Carlo M. Cipolla, «As Leis da Estupidez Humana», em Allegro ma non troppo (Bologna: Editorial Crítica, 2001), 33–60.
[5] Jaime Nogueira Pinto, António Champalimaud: Um Olhar (Alfragide: Dom Quixote, 2020).
[6] Fernando Amado Couto, Moçambique 1974: O Fim do Império e o Nascimento da Nação, 1a (Maputo: Ndjira, 2011), 71–72.
[7] Pinto, António Champalimaud: Um Olhar, 147.
[8] Couto, Moçambique 1974: O Fim do Império e o Nascimento da Nação, 63–65.
[9] Inácio de Passos, Moçambique: A Escalada do Terror (Michigan: the University of Michigan, 1977), 11, https://www.scribd.com/doc/39558743/Inacio-de-Passos-Mocambique-A-Escalada-do-Terror.
[10] Couto, Moçambique 1974: O Fim do Império e o Nascimento da Nação.
[11] Passos, Moçambique: A Escalada do Terror, 32; Adelino Timóteo, Jorge Jardim - O Ano do Adeus ao Ultramar, 1a (Maputo: AT, 2024).
[12] Passos, Moçambique: A Escalada do Terror, 19–20.
[13] Passos, 11.
[14] Couto, Moçambique 1974: O Fim do Império e o Nascimento da Nação, 63.
[15] Couto, 65.
[16] Passos, Moçambique: A Escalada do Terror, 59.
[17] Adelino Timóteo, Os Últimos Dias de Uria Simango, 1a (Maputo: AT, 2017), 11.
[18] “A maior glória não está em nunca cair, mas em levantar-se cada vez que se cai.”
[19] “A democracia é a pior forma de governo — com excepção de todas as outras.”
[20] “O poder é fazer com que alguém diga que dois mais dois são cinco.”
[21] “A verdade não está do lado do poder, mas da dignidade.”