32ª Edição. A Cela de Natal: Uma Confissão no Escuro
Beira, Moçambique, 1974. Evo Fernandes passa o Natal e Fim do Ano detido sem acusação, vive o Natal como silêncio e resistência. A liberdade, sem memória, é apenas outra forma de prisão
Bem-vindo(a) à 32ª Edição de Tenho Uma Coisa Para Te Contar, publicada por ocasião do 80º aniversário de Evo João Camões Fernandes. Se preferir ler esta publicação em inglês, aceda aqui: 32nd Edition. The Christmas Cell: A Confession in the Dark.

A Memória Entre Grades
Nem todos os Natais são feitos de luzes e cânticos. Alguns são tecidos de silêncio, grades e uma garrafa de whisky partilhada entre prisioneiros.
Esta edição leva-nos a uma cela do quartel da Polícia Militar (PM) na Cidade da Beira, no final de 1974, onde Evo Fernandes passou o Natal e o Fim de Ano, detido sem acusação, sem julgamento e sem explicação.
A narrativa alterna duas vozes: a introspectiva de Evo, que viveu o silêncio por dentro e a irónica do jornalista italiano Giancarlo Coccia, que o acompanhou nessa cela e deixou registo no livro A Cauda do Escorpião: O Adeus a Moçambique (2011) [1]. Entre ambos, traça-se um retrato cruzado da prisão e do país.
Coccia fora detido em Vila Pery e enviado para uma cadeia civil na Beira, em cumprimento de mandado de captura emitido no dia 24 de Setembro pelo alto-comissário em Lourenço Marques (p. 342).
Uma “antecâmara do absurdo tropical”, poderia ter escrito Coccia, perante latrinas abertas, calor sufocante e “prisioneiros vítimas dos boateiros e seus acólitos” (p. 349).
Dias depois, Coccia foi levado à presença do major Gonçalves Rebelo, “chefe da polícia ‘secreta’ do COPCON — o KGB do novo Portugal na cidade da Beira” — como ele próprio o descreve. Coccia, ao vê-lo, não hesitou em apelidá-lo de “James Bond”, dada a sua semelhança com o famoso espião britânico. Rebelo disse-lhe que desconhecia a razão da sua detenção, mas que seria transferido para um “alojamento diferente”, justificando:
“As celas aqui estão muito cheias, e estou certo de que você não gostaria de ficar numa delas!”.

Celebração no Absurdo: Fim de Ano com Grades e Whisky
Depois de passar as “...primeiras 24 horas como ‘hospede’ do glorioso e revolucionário Movimento das Forças Armadas”, na Avenida Mouzinho de Albuquerque,[2] Giancarlo Coccia foi transferido para a cela partilhada, onde o Natal e o Fim do Ano foram celebrados com insultos sussurrados, vigilância embriagada e uma sensação persistente de que a realidade fora sequestrada por um autor malicioso.
Antes de dividir a cela com Evo Fernandes, Coccia celebrou o Natal com outros detidos “reaccionários”, como Júlio Lopes e o capitão Serra.
Todos tinham as famílias na Beira, mas ali viveram um ensaio sombrio de liberdade algemada e sem ‘paz na terra aos homens de boa vontade”.
O quotidiano de Coccia tornou-se um desfile de ordens sem assinaturas, acusações sem voz e oficiais que hesitavam antes de dizer “não sei”.
Entre o quinto e sétimo dia, Coccia foi transferido do QG para o quartel da Polícia Militar. “A situação ali era diferente”, recorda. “Não havia barras na porta e nas janelas e dentro de certos limites, podia-se circular à vontade... Uma espécie de liberdade vigiada” (pág. 348).
Ao entrar na cela percebeu que “Não era o único «hóspede» desta residência forçada... O meu novo companheiro, Evo Fernandes, era um advogado [moçambicano] de família com origem goesa e antigo director do Notícias da Beira. Homem de confiança de Jorge Jardim, tinha sido preso por suspeita de ser «instigador» das massas reacionárias” (p. 349).
“Aqui ninguém sabe quem manda,” escreveria mais tarde Coccia. “E quando não se sabe quem manda, todos têm medo — menos o silêncio.”
A nova morada de Evo incluía cimento grosso, mosquitos e uma vizinhança improvável: um italiano barulhento (Coccia) e um português apopléctico (Júlio Lopes).
O que unia os três? O infortúnio de serem detidos por razões que nem Kafka, bêbado de absurdo, ousaria redigir.
Coccia acumulava acusações dignas de um romance de aeroporto: espião da CIA, agente da BOSS sul-africana, braço-direito de generais esquecidos e até “mentalizador” de comandos em Montepuez. Evo não resistiu à ironia da situação. Olhando para Coccia, murmurou:
“Não te safas da fama.”
No Labirinto da Liberdade
Evo Fernandes não sabia que sabia demais, nem quem entre os senhores do novo poder, decidira que a melhor forma de proteger a liberdade era confiná-la.
Na viragem de 1974 para 1975, ser detido era quase um distintivo: prova de que se era incómodo ou pior, lúcido. O Acordo de Lusaka encerrara o império, mas inaugurara uma nova ordem, onde o “homem prudente” passava a ser o mais perigoso.
Giancarlo Coccia, apanhado na mesma teia, chamaria esse tempo de “febre de detenções preventivas à portuguesa” — um vírus tropical, de contágio rápido e sintomas cómicos: ordens sem carimbos, prisões sem acusações, guardas que pediam desculpa ao prender.
A cadeia da Beira, dizia Coccia, enchia-se não de criminosos, mas de “figuras que lembravam perigos antigos, ou fantasmas ainda não exorcizados”: um alfaiate que discutira política, um operário que vira “coisas”, um poeta que já não escrevia — mas ainda pensava.
Num desses silêncios cortados por passos e resmungos, Evo recordou versos seus, escritos anos antes, mas que pareciam ditados ali mesmo, entre cimento e ferro:
[...]
“Há um inverno antecipado em cada outono.
E o silêncio.
(…)
Penso em qualquer coisa que me fizesse chorar.
E sorrio, como uma mãe vendo o filho,
Mas morto.”— Poema Votivo, Evo João Camões Fernandes

A cela não tinha relógio. O tempo era repetição: o ranger do portão, os soldados bêbados, os olhares envergonhados.
Fora dali, o país avançava em marcha forçada: a FRELIMO consolidava o controlo; o MFA trocava civis por fardas improvisadas. Como dizia um outro jornalista, Ricardo Saavedra[3], vivia-se um tempo cinzento: sem proclamações de excepção, mas onde o medo circulava como ordem não escrita.
Enquanto a FRELIMO preparava o país para a expansão da lei das “zonas libertadas”, forjada em dez anos de guerra, o MFA fazia-lhe o favor de prender, sem grande critério, quem pudesse dificultar a transição ou comprometer a missão. A prisão tornou-se ferramenta de gestão política. Não era preciso um crime, bastava não alinhar com a pressa da história.
Evo era só mais uma peça nesse tabuleiro invisível. Mas ao contrário dos peões, sabia que o jogo já não seguia regras, por isso resistia em silêncio, com memória.
Dois Homens e o Silencioso
Coccia entrou na cela da Beira como quem pisa num palco mal iluminado, com cheiro a roupa suada e moral abafada. Trazia nas mãos um casaco mal amanhado e nos olhos o espanto cínico de quem já vira de tudo, menos aquilo.
“Tens ar de intelectual,” disse o outro homem ao fundo, sem sorrir. “Ou de culpado.”
Evo não parecia perturbado. Havia nele o ar antigo dos que se habituaram a esperar, não por salvação, mas por coerência.
Coccia, sempre jornalista, compunha mentalmente a cena: os detalhes, os nomes, os tiques dos guardas, a coreografia absurda da prisão sem crime.
Evo, ao contrário, apenas observava.
“Dizem que és espião,” atirou Coccia, meio risonho, meio bêbado do absurdo.
“E tu, jornalista.”
“Isso é pior?”
“Depende de quem lê.”
Nas horas seguintes, partilharam o calor de um colchão fino e uma garrafa metálica com restos de whisky. Coccia falava mais. Evo ouvia com o cansaço de quem já viu muitas revoluções passarem pela porta, todas com promessas, algumas com algemas.
“Já escreveste sobre isto?”, perguntou Evo.
“Estou a escrever agora.”
Evo olhou o tecto manchado, imaginando uma liberdade chegada de bota suja e bafo de aguardente, improvisada, desleixada, sem selo de promessas.
Coccia soltou uma gargalhada breve. Depois, o silêncio.
A noite de fim de ano aproximava-se. Um guarda cantava desafinadamente canções revolucionárias da metrópole. Outro dormia encostado ao fuzil. A prisão era vigiada por homens que mal se aguentavam de pé.
Coccia não resistiu à ironia:
“Sabes, se isto fosse ficção, ninguém acreditava.”
Evo finalmente riu. “É por isso que é real.”
Naquela cela, não houve promessas. Houve whisky partilhado, silêncio cúmplice e um entendimento sem palavras entre dois homens que sabiam demais — um por profissão, o outro por condição.
Mais tarde, Coccia escreveria que nunca esqueceu aquele olhar, nem aquele silêncio. Evo como sempre não escreveu, mas guardou. Guardou o que importa: a consciência de que a história às vezes se escreve com o que não se diz.
O Cerco, o Teatro e o Grito
(De Dezembro à madrugada de 1975)
Evo Fernandes não era um nome anónimo. Muito antes de ser detido, já circulava discretamente como “elemento perigoso”. Para o novo regime, lembrar demais era um risco. A cela não foi punição, foi aviso.
Licenciado em Direito, activo em fóruns cívicos, Evo não se alinhava nem com os tecnocratas coloniais nem com a ortodoxia revolucionária. Não conspirava, mas fazia perguntas. Num tempo em que neutralidade equivalia a suspeição, isso bastava. A prisão chegou sem comunicado nem sentença, como parte de um sistema que silencia antes de justificar.
Ricardo de Saavedra descreve esse período como um “tempo cinzento entre o Acordo de Lusaka e a posse do Governo de Transição”, onde abundavam detenções sumárias, muitas vezes justificadas por “desinformação ou simples receio”. A autoridade era difusa: COPCON, MFA e FRELIMO actuavam em zonas de sobreposição. “Havia comandos paralelos”, escreve Saavedra. “Oficiais do MFA oscilavam entre ordens do Estado-Maior e quadros políticos da FRELIMO. Alternavam entre cumplicidade e desconfiança.”
Essa ambiguidade produzia confrontos reais. Coccia menciona episódios de tensão entre comandos portugueses destacados na Beira e quadros da FRELIMO treinados em Nachingwea — figuras que já actuavam com autoridade paralela na zona centro, antecipando a lógica de comando que se consolidaria após a independência. Evo foi um desses nomes riscados antes do tempo.
No vácuo de clareza, prender tornou-se política de contenção. Bastava um nome, uma memória, uma inquietação. Muitos não sabiam por que estavam presos e os guardas também não. Evo observava, não gritava. Era o caso típico: preso por existir com lucidez. Como nota Saavedra, bastava estar “no sítio errado, a dizer as coisas certas”.
Na noite de 29 de Dezembro, não houve fogo de artifício. A celebração resumiu-se a biscoitos, bananas, o resto de uma garrafinha de whisky e uma doce ironia, talvez a única liberdade ainda possível. Todos ali se sentiam prisioneiros políticos, mas nenhum sabia ao certo de que crimes estava acusado.
“Tudo isto cheirava a KGB, à la stalinista!” — concluía Coccia.
À meia-noite de 31 de Dezembro, os navios da Beira uivaram como feras. Na cela, Evo, Coccia e Júlio Lopes brindaram à sobrevivência.
“Celebrámos o novo ano como um bando de idiotas,” escreveu Coccia. “Mas por uma noite, todos parecíamos livres, inclusive os nossos carcereiros.”
Armas largadas, cintos desapertados. A cela por instantes, foi palco de um teatro do absurdo.

O alferes Mário, jovem e contido, passava à porta. Baixava os olhos diante de Evo. Quando Coccia lhe perguntou por que estavam presos, respondeu apenas:
“Não sou eu quem decide. Só cumpro.”
Era o rosto humano de um sistema que já não distinguia o erro do incómodo.
O Dia Seguinte à Liberdade
(3 de Janeiro de 1975)
Coccia escreveria mais tarde:
“Evo era o prisioneiro ideal. Não reclamava, não se agitava. Observava.
Sabia que não adiantava gritar. Falava pouco, mas quando o fazia, cada palavra parecia pensada três vezes. Se havia raiva, era a raiva dos que já compreenderam tudo e por isso, doi em silêncio.”
Evo parecia sempre calmo, mas Coccia notava que às vezes fixava um ponto qualquer no cimento, como se discutisse com alguém dentro da própria cabeça. Talvez o silêncio dele não fosse lucidez, mas exaustão.
“Vi homens desabar por menos, mas ele não. Parecia já ter feito as pazes com a dor, como quem lê um poema que sabe que não será publicado.”
Deixemos que seja o próprio Coccia a narrar:
“No dia 3 de Janeiro vieram chamar o Evo Fernandes. Um dos guardas disse-me que o Evo ia ser libertado e esperei inquieto o seu regresso para poder celebrar com ele. Chegou cerca das cinco da tarde. A cara dele estava cinzenta de raiva.
— Estás livre? Vais-te embora? - perguntei.
— Sim . . . e mesmo tu vais sair.
— Queres dizer que seremos libertados?
ー Sim!
— Bom! Viva! Sou feliz! E tu, não estás feliz? Porquê essa cara?
— Os filhos da puta — berrou o Evo. — Estes bastardos filhos de uma cadela... Sabes uma coisa? A minha esposa, disseram-me agora, esteve a sedativos durante uma semana! Porquê? Porque, preocupada comigo teve uma crise de histerismo no meio da cidade... esqueceram-se de me dizer... Os bastardos.
Quando o Evo Fernandes saiu do quartel-prisão foi directamente para o hospital. Luísa, a esposa sedada, não o reconheceu.
Epílogo – A Cela Vazia
Para Evo Fernandes, aquele 3 de Janeiro foi um dia trágico. Para Coccia, um dia quase festivo — ainda que breve.
“Você está livre,” disse-lhe o major Gonçalves Rebelo, com o agente consular italiano ao lado. “Mas terá de deixar Moçambique nas próximas 24 horas. É considerado persona non grata.”
“Não grato para quem, major? Para o MFA, para a nova polícia do COPCON? Ou será para a Frelimo?”
“Para o Governo de Transição,” respondeu o major, secamente, achando dispensável recordar a famigerada ordem do comissário político da FRELIMO, Emílio Armando Guebuza:
«Para os colonialistas não há outra solução. Temos que aplicar a Lei do 24/20. Vinte e quatro horas para deixar o país e levarem com eles um máximo de vinte quilos de bagagem!” (p. 339).
Coccia escreveu sobre Evo com uma leveza amarga. Seus relatos breves, objectivos, carregados de ironia, contrastam com o silêncio carregado que Evo preferiu manter. Um narrava para não esquecer; o outro para que o esquecimento nunca fosse imposto.
Quando Evo saiu, a cela permaneceu intacta. A mancha na parede, a manta dobrada, o silêncio espesso.
Coccia olhou o canto onde Evo costumava sentar-se, braços cruzados e olhar fixo num ponto que não existia.
Sem papel, sem lápis, Evo escrevia com o pensamento, como quem já leu o fim da história e espera que alguém a descubra por si.
A cela parecia maior. Mas não era espaço: era ausência.

Os guardas rondavam agora mais sóbrios. Os outros presos murmuravam com a prudência dos dias contados.
Coccia soube então o que o Evo deixara ali: um mapa invisível da condição do país. A cela de Evo era um símbolo, sim, mas também era um produto de uma engrenagem já montada: alianças práticas entre o MFA e futuros quadros do poder moçambicano. Detenções como a de Evo não foram desvios, foram ensaios.
Um país onde a esperança andava de farda e a dor dormia sedada.
Lá fora, slogans e bandeiras anunciavam a independência. Naquela cela da Beira, o futuro já tinha passado e não pedira licença.
No labirinto da liberdade, Evo aprendeu a reconhecer as paredes invisíveis e a caminhar entre elas em silêncio, mas sem ceder.
[1] Portuguese edition of the book first published in English as The Scorpion Sting: Mozambique (1976).
[2] Giancarlo Coccia, A Cauda do Escorpião: O Adeus a Moçambique, 1ª edição em português (Lisboa: Vertente, 2011), 346.
[3] Ricardo de Saavedra, Os Dias do Fim: Romance (Editorial Notícias, 1995).